"Deus quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da Verdade" ITimóteo 2,4
Conhecimento
da Verdade
7. O conhecimento da Verdade tem três graus.
-
A verdade buscamo-la em nós, no próximo e em si mesma:
·
em nós,
julgando-nos a nós mesmos;
·
no próximos,
compadecendo-nos de seus males;
·
em si mesma,
contemplando-a com coração limpo.
-
Assinalei-te o número dos graus; observa agora sua ordem. Gostaria, antes
de
tudo, de que a própria Verdade te ensinasse por que ela deve ser buscada antes
nos próximos que em si mesma. Entenderás, depois, por que deves buscá-la antes
em ti que nos próximos.
-
Ao pregar as bem-aventuranças, com efeito, o Senhor antepôs os misericordiosos
aos limpos de coração (Mt 5, 7-8). É que os misericordiosos logo descobrem a
verdade nos próximos: dirigem-lhes seus afetos e adaptam-se de tal modo, que
sentem como próprios os bens e os males dos outros:
·
Com os doentes,
adoecem; com os que se escandalizam, abrasam-se (II Cor 11, 29). “Alegrai-vos
com os que estão alegres, chorai com os que choram” (Rm 12, 15).
-
Purificados já no íntimo de seu coração pela mesma caridade fraterna,
deleitam-se em contemplar a verdade em si mesma, por cujo amor toleram os males
dos outros.
-
Os que no entanto não se consociam assim com seus irmãos, senão que ofendem aos
que choram, menosprezam aos que se alegram, ou não entendem em si mesmos o que
se passa com os outros, por não sentir afetos semelhantes aos seus, nunca
poderão descobrir a verdade nos próximos. A estes, adequa-se perfeitamente o
tão conhecido ditado: “Nem são sente o que sente o doente, nem o saciado o que
sente o faminto”. O doente e o faminto, com efeito, são os que melhor se
compadecem dos doentes e dos famintos, porque o vivem igualmente.
-
A verdade pura não a compreende senão o coração puro; e ninguém sente tão
vivamente a miséria do irmão do que o coração que assume sua própria miséria.
-
Para que sintas na miséria de teu irmão teu próprio coração de miséria,
precisas conhecer antes tua própria miséria:
·
só assim poderás
viver em ti seus males, e surgirão em ti iniciativas de ajuda fraterna.
-
E, com efeito, foi assim que agiu o nosso Salvador:
·
quis sofrer para
saber compadecer-se; fez-se miserável para aprender a ter misericórdia.
-
E, assim como dele se escreveu: “Aprendeu a obediência pelas coisas que sofreu”
(Hb 5, 8), assim também soube o que é a misericórdia. Isso, naturalmente, não
quer dizer que Aquele cuja misericórdia é eterna ignorasse a misericórdia,
senão que aprendeu no tempo pela experiência o que por sua natureza sabia desde
a eternidade.
13. Se o que não era miserável se fez miséria para experimentar o que já
sabia previamente, quanto mais não deves tu, não digo fazer-te o que não és,
mas atender ao que és, porque, com efeito, és miserável? Aprenderás assim a
misericórdia, e só assim a podes aprender.
-
Porque, se consideras o mal de teus próximos e não atendes ao teu, sentir-se-á movido
não à compaixão, mas à indignação; tendemos, com efeito, a julgar, não a
ajudar; a destruir furiosamente, não a instruir com brandura. “Vós, que sois
espirituais”, diz o Apóstolo, “admoestai-o com espírito de mansidão” (Gl 6, 1).
O conselho e preceito do Apóstolo consiste em que ajudes ao irmão enfermo com a
mesma mansidão que queres que te ajudem a ti quando te enfermas; e consiste
ainda em que entendas quanta mansidão deves ter no trato com o pecador: “refletindo
cada um sobre si mesmo”, diz ainda o Apóstolo, “não caia também em tentação”.
14. Importa considerar com que perfeição o discípulo da verdade segue a ordem
estabelecida pelo Mestre. Nas bem-aventuranças a que me referi mais acima, com
efeito, os misericordiosos precedem aos limpos de coração, e os mansos aos
misericordiosos (Mt 5, 4.7-8). O Apóstolo, ao exortar os espirituais a que instruam os
carnais, acrescenta: “com espírito de mansidão”.
-
A instrução dos irmãos certamente corresponde aos misericordiosos; fazê-lo com
brandura, aos mansos. É como se dissesse: não pode contar-se entre os
misericordiosos aquele que não é manso em si. Veja como o Apóstolo mostra
claramente o que mais acima prometi demonstrar:
·
a verdade, com
efeito, havemos de buscá-la antes em nós mesmos que nos próximos “Refletindo
cada um sobre si mesmo”, isto é, sobre quão fácil é tentado e quão propenso é a
pecar: por esta consideração, far-se-á manso e poderá aproximar-se dos outros
para socorrê-los “com espírito de mansidão”.
-
E, se não és capaz de escutar o discípulo que te aconselha, teme ao menos o
Mestre que te acusa:
·
“Hipócrita, tira primeiro
a trave de teu olho, e então verás para tirar a aresta do olho de teu irmão”
(Mt 7, 5).
-
A soberba da mente, com efeito, é essa trave grande e grossa no olho, que por
sua corpulência vã, não sã, inchada, não sólida, obscurece o olho da mente, e
escurece a verdade. Se chegar a ocupar tua mente, já não poderás ver-te nem
sentir-te como és ou como podes ser, mas como te queres, como pensas que és, ou
como esperas vir a ser.
-
Que é a soberba senão, como a define Santa Teresa de Ávila, o amor da própria
excelência?
-
E podemos dizer que, pelo contrário, a humildade é o entendimento da própria
excelência, que o humilde não ama desordenadamente a própria excelência, mas
sabe reconhecê-la em si, quando é real, sem jamais perder de vista que ela é,
antes e acima de tudo, um dom de Deus.
-
Nem o amor nem o ódio conhecem o juízo da verdade.
-
Queres ouvir o juízo da verdade?
·
“Julgo segundo o
que ouço” (Jo 5, 30): não segundo odeio, nem segundo amo, nem segundo temo.
-
Há um juízo do ódio, como este:
·
“Nós temos uma
lei, e segundo a lei [Ele] deve morrer” [Jo 19, 7].
-
Há um também do temor, como este:
·
“Se o deixamos
assim, crerão todos nele; e virão os romanos, e destruirão nossa cidade e nossa
nação” [Jo 11, 48].
-
Mas o juízo do amor é como o de Davi com respeito ao filho parricida:
·
“Trata bem”, diz ele,
“ao jovem Absalão” [II Sm 18, 5].
-
Há uma norma segundo as leis humanas que se observa tanto nas causas eclesiásticas
como nas civis:
·
está disposto que
os amigos íntimos dos litigantes nunca devem ser convocados a juízo, para que,
levados pelo amor dos amigos, não enganem nem se deixem enganar.
-
E, se o amor que professas a teu amigo influi em teu critério como atenuante ou
ausência de culpa, quanto mais o amor que te professas a ti mesmo não te
enganará quanto emitas um juízo contra ti?
15. Por conseguinte, o que cuida de conhecer a verdade de si mesmo deve tirar
a trave de sua soberba, porque ela impede a seus olhos a luz, e terá de dispor-se
a ascender no coração, observando-se a si mesmo em si mesmo, até alcançar, com
o décimo segundo grau da humildade (Temor
a Deus), o primeiro da verdade:
·
“Rememorar a
própria pequenez e a degradação dos pecados cometidos, fazendo tudo não mais
pelo temor do inferno, mas por amor a Cristo” (Regra de São Bento Capitulo VII)
-
Quando pois tiver encontrado em si mesmo a verdade, ou melhor, quando se tiver
encontrado a si mesmo na verdade e puder dizer:
·
“Eu fiei-me, e por
isso falei; eu estou pois extremamente humilhado” [Sl 116, 10], ascenda mais
então o homem no coração, para que a verdade seja exaltada, e alcance o segundo
grau, e diga em seu arroubo: “Todos os homens são mentirosos” [Sl 116, 11].
-
Pensas que Davi não seguiu esta mesma ordem? Pensas que o profeta não advertiu
o que o Senhor, o Apóstolo e eu entendemos seguindo seu exemplo? Diz ele:
·
“Eu fiei-me” na
Verdade, que dizia: “O que me segue não anda nas trevas” [Jo 8, 12]. “Fiei-me”,
pois, seguindo-a, “e por isso falei” confessando.
-
Que confessei?
·
A verdade que
conhecia na fé. E, depois que “me fiei” para a justiça e “falei” para a
salvação, “estou extremamente humilhado” – ou seja, perfeitamente.
-
É como se dissesse:
·
já que não me
envergonhei confessando contra mim mesmo a verdade que conheci em mim, cheguei
à perfeição da humildade.
-
“Extremamente”, portanto, pode entender-se por “perfeitamente”, como aqui:
·
“Compraz-se
extremamente em seus mandatos” [Sl 112, 1].
-
Se todavia alguém sustenta que “extremamente” significa aqui “muito” e não “perfeitamente”,
por ser tal o significado que lhe dão os expositores, tal tradução não
discordaria do sentido do Profeta, como se se dissesse:
·
Eu, com efeito, quando
ainda não conhecia a verdade, considerava-me algo, ainda que não fosse nada. No
entanto, desde que me fiei em Cristo, ou seja, desde que imitei sua humildade,
passei a conhecer a verdade: ela foi enaltecida em mim, por causa de minha
mesma confissão.
-
Mas “eu estou extremamente humilhado”, isto é:
·
a mesma
consideração de mim suscitou-me grande desprezo.
27. Há pois um caminho para cima e outro para baixo. Um caminho leva ao
bem, enquanto o outro ao mal. Esquiva o mau caminho, e escolhe o bom. Se porém
te sentes incapaz disso, suplica com o profeta dizendo: “Da via da iniquidade,
afasta-me” [Sl 118, 29].
De
que modo?
“E
concede-me o favor de tua lei” [Sl 118, 29], ou seja, da lei que deste aos que
delinquem no caminho, aos que deixam a verdade. Um destes sou eu, que caí da verdade.
Mas, então, o que cai já não poderá levantar-se?
Por
isso elegi o caminho da verdade, para ascender até à cúspide de onde caí por
causa de minha soberba.
Ascenderei
e cantarei: “Foi bom para mim, Senhor, que me humilhasses; melhor para mim é a
lei de tua boca que milhares de moedas de ouro e de
prata”
[Sl 118, 71-72].
-
Pode parecer-te, sim, que Davi propõe dois caminhos; mas presta atenção e verás
que não é senão um, ainda que com dois nomes:
Chama-se
iniquidade para os que descem,
e
verdade para os que sobem.
·
Os degraus são os mesmos tanto para os que
ascendem ao trono como para os que descem.
·
Um só, com efeito, é o caminho tanto para os
que se aproximam da cidade como para os que a deixam; e
·
Uma só é a porta tanto para os que entram na
casa como para os que saem dela.
-
Jacó viu em sonho que por uma mesma e só rampa subiam e desciam anjos (Gn 28,
12). Que
quer dizer isso? Que, se queres voltar à verdade, não precisas buscar um novo e
desconhecido caminho:
-
Basta-te o mesmo pelo qual desceste. Já o conheces. E, desandando o mesmo
caminho, sobe humilhado os mesmos degraus que desceste ensoberbecido.
-
Desse modo, o que é o:
·
décimo segundo
degrau da soberba (O costume de pecar)
para o que desce,
o
esse mesmo degrau
há de ser o primeiro da humildade (O
Temor a Deus: nos sentidos, na vontade e na inteligência) para o que sobe;
·
o décimo primeiro
da Soberba (Liberdade de pecar) para
o que desce,
o
o segundo da
Humildade (A negação dos próprios
desejos) para o que sobe;
·
o décimo da
Soberba (Rebelião) para o que desce,
o
o terceiro da
Humildade (Prática da obediência) para
o que sobe;
·
o nono da Soberba
(Confissão simulada) para o que desce,
o
o quarto da
Humildade (Suportar o desprezo e a
injustiça dos homens) para o que sobe;
·
o oitavo da
Soberba (Escusa dos pecados) para o
que desce,
o
o quinto da
Humildade (Confiar a consciência ao
Diretor Espiritual) para o que sobe;
·
o sétimo da
Soberba (Presunção) para o que desce,
o
o sexto da
Humildade (Renunciar a qualquer conforto
externo) para o que sobe;
·
o sexto da
Soberba (Arrogância) para o que desce,
o
o sétimo da
Humildade (Renunciar ao reconhecimento
dos méritos pessoais) para o que sobe;
·
o quinto da
Soberba (Singularidade) para o que desce,
o
o oitavo da
Humildade (Renunciar ao desejo de
governar a qualquer tipo de mando) para o que sobe;
·
o quarto da
Soberba (Jactância) para o que desce,
o
o nono da
Humildade (Exercitar o silêncio) para
o que sobe;
·
o terceiro da
Soberba (Alegria tola) para o que desce,
o
o décimo da
Humildade (Ser circunspecto e evitar o
riso fútil) para o que sobe;
·
o segundo da
Soberba (Ligeireza de espírito) para
o que desce,
o
o décimo primeiro
da Humildade (Ser discreto) para o
que sobe;
·
o primeiro da
Soberba (Curiosidade) para o que desce,
o
o décimo segundo da
Humildade (Rememorar a própria pequenez e
a degradação dos pecados cometidos, fazendo tudo não mais pelo temor do
inferno, mas por amor a Cristo) para o que sobe.
(Resumo esquemático Regra de São Bento
Capitulo VII)
-
Quanto houveres encontrado, ou melhor, reconhecido em ti tais degraus
da
soberba, já não terás de laborar para encontrar o caminho da humildade.
Os Graus da Humildade e da Soberba-São Bernardo de Claraval-Editora Concreta
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